terça-feira, 13 de setembro de 2011
Música Tem de Ter Conteúdo
"Música Tem de Ter Conteúdo", nesta entrevista publicada pelo "Estado" em 1º de novembro de 1997 (orientado por Carlos Haag), o compositor alemão Hans Joachim Koellreutter falou sobre sua infância, a perseguição nazista, sua chegada ao Brasil, as aulas que deu a Tom Jobim, sua visão da música e do ensino dela. Também explicou porque sempre carrega consigo a Bíblia e o "Fausto", de Goethe.
Koellreutter morreu terça-feira (13 de setembro de 2005), aos 90 anos.
Pequeno histórico: Em novembro de 1937, chegava ao Brasil o maestro, compositor e educador alemão Hans-Joachim Koellreutter. Antifascista convicto, o jovem de 22 anos desafiara a Gestapo, criando grupos de vanguarda que tocavam música de compositores judeus. Vinha ao país para uma série de turnês e, ainda no navio, ouviu sobre a instauração do Estado Novo e descobriu-se fugindo de uma ditadura para cair em outra. Mas a paixão pelo povo brasileiro foi mais forte e ele acabou ficando por aqui. Na sua bagagem, trazia a modernidade musical, sons estranhos a uma nação que cultuava o nacionalismo. Nascido em Freiburg, em setembro de 1915, Koelreutter regeu, em 1931, seu concerto de estréia e, dois anos depois, publicava suas primeiras obras. Com Hitler já no poder, fundou, em 1935, com amigos, o Círculo de Música Nova, em Berlim, e, ainda naquele ano, se apresentou como flautista em Paris. Pouco antes de vir ao Brasil, o músico irrequieto participou também da criação do Círculo de Música Contemporânea, em Genebra. Motivos mais do que suficientes para atrair a ira dos nazistas, que, naqueles anos, execravam a arte contemporânea. Estabeleceu-se entre o Rio e São Paulo e não demorou muito para pôr em prática, aqui também, a sua notória subversão artística. Em 1939, criou a revista e o movimento Música Viva, responsável pela divulgação da música nova, trabalho que estendeu por toda a sua vida, estreando, no Brasil, composições de Stravinski, Schoenberg e Bartók, entre outros. As reações foram temerárias. Numa mistura de medo, xenofobia e inveja, Koellreutter foi atacado pela imprensa como nazista, comunista, plagiário e mistificador. Apesar dos bons ouvidos, ele fez que não ouviu ou reagiu à altura da agressividade dos ataques, entre eles, os desfechados por Camargo Guarnieri na sua Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil (1950), na qual, sem citar nomes, chamava o dodecafonismo de "refúgio de compositores medíocres". Antes disso, Koellreutter lançara o Manifesto de 1946, em que divulgava abertamente a defesa do atonalismo e a necessidade da divulgação da música contemporânea. Os nacionalistas não perdoaram o estrangeiro, porém poucos pararam para ouvi-lo. Entre os anos 50 e 60, viajou ao Japão e à Índia, países em que descobriu realizadas muitas de suas teorias e filosofias estéticas. Em Nova Délhi, foi um dos fundadores da Filarmônica de Bombaim e criador da Delhi School of Music. Esteve ausente do Brasil por 13 anos e, na volta, em 1975, retomou sua paixão pelo ensino em Londrina, São Paulo e no Rio. Seus alunos, hoje, são a nata da música clássica brasileira: Cláudio Santoro, Edino Krieger, Issac Karabtchevski, César Guerra-Peixe, Severino Araújo e Tom Jobim. Ainda assim, ao candidatar-se, em 1981, à Academia Brasileira de Música, não teve votação suficiente para ganhar uma das cadeiras. Tampouco foi boa a experiência de dirigir, à sua maneira, o Conservatório de Música de Tatuí, onde não teve forças para vencer os inúmeros obstáculos colocados pela burocracia. Morando em São Paulo, o compositor esteve ativo até sua morte. Tinha acabado de compor (em 1997) a peça Panta Rhei ("Tudo flui", em grego), para vibrafone-solo. E, 1996, em Santos, apresentou sua ópera O Café, de longa gestação, baseada em texto de Mário de Andrade. Participou, no Rio, da Bienal de Música Contemporânea, mas boa parte do seu tempo era dedicada aos alunos, aos quais ensina, avisando antes que "o bom educador é aquele que não educa".
Vamos à entrevista...
Como começou sua relação com a música?
É uma historia muito romântica. Aos 12 anos, eu era um moleque e fiz uma série de bobagens na escola. Um dia exagerei. Na minha classe, havia colegas muito pobres que gostavam muito de bananas de chocolate. Enquanto mudávamos de roupa para fazer ginástica, pedi licença para fazer xixi, mas fui roubar dinheiro da roupa dos meus colegas ricos para comprar os tais doces para os pobres. Os professores, então, queixaram-se a meu pai, um médico famoso em nossa cidade, que ficou muito bravo e decidiu prender-me em casa como castigo. Fiquei no quarto, sem poder brincar na rua e sem saber como passar o tempo. Decidi, então, arrumar um armário, onde encontrei uma flauta antiga do Exército austríaco, um flajolete, e comecei a estudá-la e a fazer música. Foi como dei meus primeiros passos para a música. Tive também o que chamávamos de detector: uma caixinha pequena com cristal em que a gente procurava a estação com agulha e ouvia música de Paris e Londres. Foram as minhas primeiras sinfonias, óperas e operetas e apaixonei-me por tudo aquilo. Melhorei meu comportamento, abandonei aquelas aventuras e me tornei um sujeito mais ou menos civilizado (risos).
Ainda assim, o sr. enganou seu pai para ir a Berlim.
Quando resolvi dizer a meu pai que queria ser músico, ele não gostou. Além disso, eu tinha tendências esquerdistas e queria estudar em Berlim, já que me havia interessado pela música moderna, que, naquele tempo, era Stravinski, Hindemith. Mas meu pai escolheu para mim um professor em Leipzig, uma cidade mais tradicional, musicalmente conservadora, e me obrigou a ir para lá. Na estação, mudei de trem e fui para Berlim, onde queria estudar com Hindemith, que era conhecido na Alemanha como um bolchevista cultural. Hoje, ele é visto como muito acadêmico (risos). Além do mais, Berlim era uma cidade muito progressista e internacionalista, coisas que me interessavam. Mudei-me para lá.
Como foi trabalhar com Hindemith e Hermann Scherchen?
Apesar do que algumas enciclopédias dizem, nunca fui aluno de Hindemith. Por um desses acasos, o compositor mais acadêmico de Leipzig, Kurt Thomas, mudou-se, naquela mesma época, para Berlim e meu pai insistiu que eu estudasse com ele. Era um grande regente de coral, mas um compositor neoclassicista, superacadêmico e tradicional. De Hindemith só assisti às primeiras apresentações que fez de sua técnica, a harmonia acústica, na Universidade de Berlim. Tivemos, isso sim, contatos pessoais, pois, como eu, ele também teve de deixar a Alemanha por não concordar com o regime de Hitler. Já de Scherchen me aproximei por razões políticas. A Gestapo queixou-se de mim ao meu pai, porque, no Natal, em vez de passar a festa com a família, como todo cristão normal, andava, como eles diziam, com judeus. Liguei, então, para Scherchen, que estava em Zurique, e ele me convidou para passar o Natal com ele. A partir daí, ele me introduziu à música dodecafônica, ao atonalismo e a todas as outras correntes de vanguarda da época.
Como reagiram as autoridades nazistas?
Viram que eu e meus amigos tínhamos atitudes antifascistas. Eu era estudante de música da Academia em Berlim e criei um círculo para apresentar compositores judeus, o que era proibido. Com amigos entrosei-me na ideologia dos estudantes daquela época. Fundamos grupos de música como reação à política cultural do governo nazista. A polícia perseguiu-nos, fecharam nossa associação de concertos, mas não aconteceu nada muito trágico. Mas, numa certa altura, fui obrigado a deixar a academia, porque eles queriam que eu entrasse numa espécie de UNE nazista. Neguei-me, disse que não queria nada com aquele governo e eles, é claro, me dispensaram. Fui para Genebra, na Suíça, terminar meus estudos.
Sua cidadania alemã foi cassada por causa da apresentação de judeus em Berlim?
Não, os nazistas cassaram-na mais tarde. Antes, comecei a fazer turnês como flautista e cheguei a ficar famoso pela Europa. Numa dessas viagens, vim parar no Brasil e toquei no norte do país, levado por uma organização chamada Instrução Cultural Brasileira. Fui a Manaus, e, em 1939, quando a guerra estourou, chamaram-me para que eu me alistasse em Ulm numa unidade do Exército. Eu lhes disse que estava no Brasil e não queria nada com a Alemanha e ainda mais entrar na guerra ao lado de Hitler. Virei desertor. Nesse ínterim, fiquei noivo de uma mulher que era parte judia, enfatizando minha ideologia antinazista com esse casamento, que fiz no Brasil. Claro que contra a vontade de meus pais, que me denunciaram à Gestapo para eu não me casar com a moça. Casei-me com ela, separamo-nos mais tarde e, hoje, ela vive no Sul.
O que o levou ao dodecafonismo?
Ele me prestava, porque ampliava a minha linguagem musical e estética. Eu admirava muito Schoenberg, Alban Berg e Webern, que faziam o grupo dodecafônico. Mas não escrevi obras dodecafônicas. Foi Scherchen quem me introduziu, dizendo-me que, como músico, precisava conhecer aquelas novas linguagens musicais.
Dessa Segunda Escola de Viena, quem mais o influenciou?
Nenhum deles em especial. Admito que fiquei muito interessado nas tentativas de Berg, com Wozzeck, Lulu, mas o que me chamava mesmo a atenção, então, era estruturar gestalticamente a música, a teoria da informação e a psicologia da gestalt.
Como foi sua chegada ao Brasil em 1937?
Foi um choque. Conhecia toda a Europa, mas essa era sempre a mesma coisa. Aqui estava um mundo diferente e tive de apreender e aprender o modo de viver deste país. Mas gostei. Havia feito uma turnê pela América Latina, mas preferi o Brasil. Não pelo país em si, mas adorei a gente daqui.
O sr. chegou em pleno Estado Novo.
Um pouco depois. Pensei como era trágico e engraçado ter saído de uma ditadura para cair em outra, mas tudo bem. Afinal, o Brasil não era a Alemanha e senti que não haveria comparação entre os dois regimes autoritários fascistas, mesmo que, aqui, houvesse simpatia pelo nazismo. De fato, não senti muito a ditadura de Vargas.
Mas o sr. foi preso poucos anos depois.
É verdade, por suspeita de espionagem. Não tinha mais nacionalidade, estava sem passaporte. Nos primeiros anos, tive a sorte de poder colaborar com Francisco Curt Lange, o musicólogo que redescobriu a música barroca de Minas, que morava em Montevidéu. Ele me convidou para fazer parte da sua Editora Interamericana de Música. Lange era progressista, gostava da música moderna e achava que seria bom trabalharmos juntos. Eu vivia em São Paulo e sabia mexer com a impressão de música em chapas de chumbo. O problema é que eu, um alemão, recebia dinheiro de outro alemão, do Uruguai, e, um dia, a polícia prendeu-me, jogaram-me no xadrez e, depois, na Luz, na Imigração, uma espécie de campo de concentração, onde convivi com nazistas, japoneses e outros alemães. Foram tempos difíceis. Nos primeiros meses, passei fome de doer e o primeiro bico foi, como já disse, o negócio da impressão de música, numa empresa chamada Fuchs. O filho do dono gostava de mim, via que eu passava fome e não tinha dinheiro. Ofereceu para eu aprender a técnica daquele artesanato e disse que, por saber música, eu dirigiria o ateliê de impressão. Demorei um ano aprendendo e, quando concluí o aprendizado, eles faliram (risos). E "venderam-me", com as ferramentas e máquinas, para outra firma de impressão em São Paulo, onde, meses depois fiquei intoxicado gravemente com o chumbo, e deixei aquele negócio. Esse foi o tempo que Guarnieri chegou de Paris, onde fôra estudar, e ficamos amigos. Saí em busca de um novo trabalho. Encontrei um alemão que dirigia uma loja chamada Casa e Jardim e me disse ter uma galeria de pintura de que eu poderia tomar conta. Ganhava o suficiente para o arroz e o feijão e só precisava trocar os quadros. Usava o tempo para dar aulas e compor. Dei até concertos lá e foi onde me prenderam, porque falava alemão com o proprietário. Já havia a suspeita de espionagem e nos levaram para a cadeia. Fiquei numa cela com um judeu e um jovem comunista. O judeu disse que eu poderia trabalhar com ele, vendendo guarda-chuvas e papel carbono, o que fiz por um tempo. Afinal, o dono da galeria estava preso. Não fui bom vendedor e, quando o outro dono saiu, me convidou para voltar à Casa e Jardim e trabalhar embalando caixotes. Subi para vendedor, depois virei caixa e me apaixonei. O dono, meu amigo, não gostou e me transferiu para uma filial no Rio.
E a música?
No Natal, chegou ao Rio a mulher de um regente húngaro que fundou a Orquestra Sinfônica Brasileira com Eleazar. Ela me conhecia da Europa e disse não acreditar que eu não estivesse tocando. Ela falou com seu marido, o maestro da orquesta, Eugen Zemka. Entrei na orquestra e fui flautista por quatro ou cinco anos. Foi então que iniciei minha carreira de músico no Brasil.
Em 1939, o sr. criou o movimento Música Viva e as reações foram as piores possíveis. Como as recebeu?
Não sei o porquê de tudo aquilo. Há várias fofocas. Quando fiquei intoxicado, o Guarnieri visitou-me, fomos muito amigos e, de repente, não éramos mais. Não sei por quê. Contam que na casa de chá do Mappin, certa vez, minha mulher e a dele puseram-se a brigar sobre quem era o introdutor do dodecafonismo no Brasil. Não sei se foi isso, mas ele virou meu inimigo n° 1. O que durou até 1977, quando ele fez 70 anos e participamos de um concerto em Teresópolis. Viramos não amigos, mas bons colegas.
E quanto às outras reações?
Eram fofocas. Pessoas que não me conheciam achavam que eu era antinacionalista. Mas eu era amigo do Villa-Lobos, do Basílio Itiberê. Certo, eu não era nacionalista, mas poderia até ter sido, em meio a essa constelação. De qualquer forma, atacavam-me.
O sr. não se revoltou com o País?
Desde que fui preso, sempre preferi pensar que essas eram coisas pelas quais se precisa passar num novo país. Nunca sofri, nunca estive infeliz. Tampouco me revoltei com os ataques. Percebi que eram pessoas com outra formação, uma cultura nova que precisava passar pelo nacionalismo, a fim de criar sua identidade. Defendi-me, quando me atacavam pelos jornais: um dia, eu era nazista e, no outro, comunista. Mas sabia que estava lutando por uma estética. Não ser nacionalista não o impediu de admirar Mário de Andrade. Tive um contato bom, mas superficial, com ele. Li O Café, gostei. Era um nacionalista, mas moderado, não um fanático, como o Camargo daquela fase ou os comunistas de verdade, como Cláudio Santoro, meu discípulo. Já eu nunca fui do partido, só um simpatizante, como não deixarei de ser.
Entre comunistas e nacionalistas, o sr. não ficou entre dois fogos?
Num certo sentido sim. Além dos nacionalistas que me detestavam, vi-me diante de discípulos e amigos que acharam que deveriam mudar seu estilo.
Isolado?
Um artista é sempre isolado. Quanto aos outros inimigos, quando, 12 anos mais tarde, voltei do Oriente, fui convidado para dirigir o MIS do Rio. De cara, quis convidar meus inimigos. Na primeira reunião, pedi a palavra. E disse: "Quero fazer agradecimentos aos meus inimigos. Eles merecem, porque eu sofri muito tempo, mas isso foi importante para a minha vida. Agradeço toda essa campanha que fizeram contra mim. Se não tivesse tido isso, não seria quem sou, não me teria esforçado tanto, aprofundado tanto, para chegar à essência das coisas. Isso só aconteceu porque vocês me obrigaram. O adversário é muito mais importante que a pessoa que só o elogia." Ninguém fez nenhum comentário.
Qual é a importância de sua viagem ao Oriente?
Do ponto de vista ideológico e filosófico, sempre tive muito em comum com aqueles países. Senti que muitas das minhas idéias estavam realizadas nesses lugares. Há muita equivalência entre o pensamento moderno, físico e científico e o misticismo metafísico de, principalmente, Índia, Japão e Indonésia. Na Índia, há uma fusão do rigor sintático, em particular, uma ligação entre improvisação e liberdade de expressão. Acho que, até hoje, o ocidental só tem a aprender com eles e nada a ensinar. Mesmo a Delhi School of Music, que fundei na Índia, foi apenas para criar um núcleo de comparações entre o Ocidente e eles. É possível também aprender a relação não hedonista do indiano com a música. Eles sentem realmente a linguagem. Isso porque a música clássica da Índia tem maior divulgação do que a nossa. Trabalhamos com 12 notas na oitava do piano; eles, 70 e tantas, com quartos de oitava. É um repertório diferente do nosso, que é mais racional ou racionalista. A liberdade na sua música é imensa e, ao mesmo tempo, há um grande rigor. Lá tudo é moderno, porque é improvisado, mesmo em trechos notados. E o improvisado está sempre mais próximo do homem comum que o organizado racionalmente.
Foi da Índia que o sr. trouxe o conceito de música utilitária, lançado, com grande polêmica, nos anos 70?
A música deve ser funcional no sentido da musicoterapia, da música feita para o rádio, a TV. O futuro da música será a fusão com atividades extramusicais. É um palpite. Não sou profeta, mas acho que o concerto é uma forma social em declínio, após ter funcionado mal por anos. Quem vai realmente a um concerto, pelo concerto em si? Eu vivo da música, mas não vou a concertos, a não ser que alguém esteja apresentando uma composição nova com a qual eu possa aprender algo. Vou para enriquecer meu repertório de conhecimento. O concerto não está mais em função da composição. Eu mesmo não componho mais pensando em apresentações.
Sair das salas de concerto é a forma de aproximar o público da modernidade?
A música é como uma linguagem qualquer que se quer aprender. Leva tempo, precisamos ouvir muito e acostumar nossa percepção a cada estilo musical. Sim, acho que a fusão com outras áreas seria uma boa ponte para aproximar o público da modernidade, por meio dos jingles, do teatro, etc. A música pura, a "música pela música", teremos cada vez menos. Mas cada um ouve e julga música de seu modo. Não creio que se possa julgar e dar razão ou não a alguém que defenda ou ataque a música nova. O problema maior é que o público não ouve a música nova, ele a escuta. Gostar da música contemporânea exige esforço, tempo, e, se não se está disposto, deixe a música de lado. Nem todo mundo precisa interessar-se por ela.
O que pensa do novo tonalismo da música contemporânea, da volta a uma sonoridade "agradável" que faz sucesso entre o público?
A fusão entre agradável e moderno é muito perigosa, pois é o que a média das pessoas gostaria de ter. Só que média é mediocridade. Quando me dizem "isso é um sucesso", espero que não seja, porque, se há sucesso, algo não vai bem. Isso nos leva a pensar qual é a função da música. Para mim, o artista tem a função de contribuir na divulgação das grandes idéias que formam a época em que nós vivemos.
Como superar a abstração da música para conseguir isso?
Não é abstrata para mim. É uma linguagem e eu a entendo como você entende português, com vocabulário e sintaxe. Mas tem de ter conteúdo. A música tem uma série de regras, princípios, tantos quanto os que regem a nossa vida hoje. Mesmo em seus contrastes, que não vejo como oposições, mas como elementos que se unem a uma entidade, a um todo. São holísticos, coisas que se complementam. Não existe bem e mal, transcendência e imanência, vida e morte. Tudo, no fundo, é uma coisa só. E são elementos que valem não só na música, mas também na vida. Afinal, não faço diferença entre ser homem e ser artista: é uma coisa só, com seus negativos e seus positivos. Penso também que essa briga com o público é mais importante que a sua solução. Se chegamos a um resultado, esse mudará amanhã. A verdade são sempre as contradições. Eu sou artista e pedagogo com mesma a paixão. E, assim, vejo sempre que esses elementos são um só. É importante trabalhar por essa idéia para que, se isso funcionar, possamos criar um mundo mais interessante e de paz.
A música é assim tão valiosa?
O valor, para mim, está no conteúdo da música. Uma música representa todas as idéias importantes do mundo em que vivemos. Por exemplo, essa superação dos opostos. Ou, então, a idéia de um outro tipo de tempo, a quarta dimensão, no sentido de uma transcendência. Essa dimensão não é um fator físico, mas uma forma de pensar. Também é importante ressaltar a ausência da causalidade, no sentido clássico do ser previsível. Em verdade, são inúmeras as causalidades que dão a sensação de uma única causa. Essa é a base filosófica e ideológica do artista. Respeito quem acha que música é entretenimento, mas para mim o artista tem de causar um choque. O choque é importante, pois você volta para casa, discute e temos, assim, um mundo mais rico do que o nosso. Isso exige um músico diferente. E também um novo homem, o apreciador. Um homem que esquece seu ego, que vive realmente o todo em que vivemos. Essa é a função do novo artista.
Qual é a função do educador? O sr. gosta de dizer que o bom educador é o que não educa.
Acho que o educador deve dialogar. Eu só posso educar se aprendo com meu interlocutor. A Rádio de Estocolmo pediu, há anos, que eu enviasse cassetes com música de meus discípulos. Eles ouviram e o diretor da rádio me perguntou se todos eram alunos de um mesmo professor, pois eram muito diferentes entre si. Isso acontece porque eu aprendo do aluno o que eu tenho de ensinar. Posso dizer "eu não faria isso, mas desse ou daquele modo". No entanto, digo isso como sugestão. Há conceitos que sempre repito antes de começar meus cursos. Não há erro absoluto em arte. O erro é sempre relativo a alguma coisa. Por isso chamo a minha estética de arte do impreciso e do paradoxal. Isso serve para libertar o aluno de todo o tipo de imitação. Ele deve experimentar e inventar algo que antes não existia. Ele precisa de coragem para isso e só a adquire se perder o medo do erro. Depois, digo também que não acreditem em nada do que o professor disser, para não acreditarem no que lêem e, mais importante, não acreditarem em nada do que pensarem. Em outras palavras, questionar tudo, de agora ao fim da vida.
Como foi ser o professor de Tom Jobim?
Ele tinha uma cultura musical e ideológica muito ampla. Nós dois éramos meninos quando nos conhecemos. Os pais dele tinham uma escola, o Colégio Brasileiro, e eu era o professor de música das crianças. Acho, aliás, que o mais moderno e o mais contemporâneo são as crianças. Devemos aprender a aprender com as crianças. A mãe de Tom pediu-me para orientá-lo e ele estudou comigo contraponto, harmonia e piano. E, apesar de ser péssimo pianista, ensinei-o a tocar piano. Infelizmente, nossa relação não durou muito. O filho e o neto dele estudaram comigo também.
Jobim foi um discípulo de Koellreutter que se empolgou pela música de Villa-Lobos?
É possível que as duas coisas convivam bem. Respeito Villa, mas sem paixão. Ele é um fenômeno especial. Não me entendam errado, mas, como músico profissional, ele foi quase amador. Ainda assim, tem a força da personalidade que cria, o que dá grande valor à sua obra. Para mim, o estilo próprio é o critério mais objetivo da obra de arte e não só para o músico.
Por que o sr. sempre carrega a Bíblia, o Fausto, de Goethe, e A Arte da Fuga, de Bach?
Tudo o que falamos até agora está na Bíblia ou no Fausto. Quanto à Arte da Fuga, de Bach, já a regi mais de 50 vezes. É uma obra fascinante, em que cada nota tem significado e, ao mesmo tempo, há uma unidade fantástica. Muitos me perguntam como chego a essas conclusões estranhas e lhes respondo que estudei o futebol na última Copa. Em campo, vi que a disciplina incrível do time brasileiro convivia com uma liberdade extraordinária, quando diante do adversário. Isso é a música. Pensei na hora na Arte da Fuga, rigorosamente disciplinada e, ao mesmo tempo,de uma liberdade de interpretação total. Desde então, trabalho deste modo: misturo aquilo que acho que é a estrutura básica, os pilares da composição, com uma mudança constante do que está entre esses pilares. Espero não abandonar essa forma de compor antes de desaparecer.
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