Hans-Joachim Koellreutter
Por Mozart Camargo Guarnieri
Considerando as minhas grandes responsabilidades, como compositor brasileiro, diante de meu povo e das novas gerações de criadores na arte musical, e profundamente preocupado com a orientação atual da música dos jovens compositores que, influenciados por idéias errôneas, se filiam ao Dodecafonismo – corrente formalista que leva à degenerescência do caráter nacional de nossa música – tomei a resolução de escrever esta carta-aberta aos músicos e críticos do Brasil.
Através deste documento, quero alertá-los sobre os enormes perigos que, neste momento, ameaçam profundamente toda a cultura musical brasileira, a que estamos estreitamente vinculados.
Esses perigos provêm do fato de muitos dos nossos jovens compositores, por inadvertência ou ignorância, estarem se deixando seduzir por falsas teorias progressistas da música, orientando a sua obra nascente num sentido contrário ao dos verdadeiros interesses da música brasileira.
Introduzido no Brasil há poucos anos, por elementos oriundos de países onde se empobrece o folclore musical, o Dodecafonismo encontrou aqui ardorosa acolhida por parte de alguns espíritos desprevenidos.
À sombra de seu maléfico prestigio se abrigaram alguns compositores moços de valor e grande talento, como Cláudio Santoro e Guerra-Peixe, que felizmente, após seguirem esta orientação errada, puderam se libertar dela e retornar o caminho da música baseada no estudo e no aproveitamento artístico-científico do nosso folclore. Outros jovens compositores, entretanto, ainda dominados pela corrente dodecafonista (que desgraçadamente recebe o apoio e a simpatia de muitas pessoas desorientadas), estão sufocando o seu talento, perdendo contato com a realidade e a cultura brasileiras, e criando uma música cerebrina e falaciosa, inteiramente divorciada de nossas características nacionais.
Diante dessa situação que tende a se agravar dia a dia, comprometendo basilarmente o destino de nossa música, é tempo de erguer um grito para deter a nefasta infiltração formalista e antibrasileira que, recebida com tolerância e complacência hoje, virá trazer, no futuro, graves e insanáveis prejuízos ao desenvolvimento da música nacional do Brasil.
É preciso que se diga a esses jovens compositores que o Dodecafonismo, em Música, corresponde ao Abstracionismo, em Pintura; ao Hermetismo, em Literatura, ao Existencialismo, em Filosofia, ao Charlatanismo, em Ciência.
Assim, pois, o dodecafonismo (como aqueles e outros contrabandos que estamos importando e assimilando servilmente) é uma expressão característica de uma política de degenerescência cultural, um ramo adventício da figueira-brava do Cosmopolitismo que nos ameaça com suas sombras deformantes e tem por objetivo oculto um lento e pernicioso trabalho de destruição do nosso caráter nacional.
O dodecafonismo é, assim, de um ponto de vista mais geral, produto de cultura superadas, que se decompõem de maneira inevitável, é um artifício cerebralista, antinacional, antipopular, levado ao extremo; é química, é arquitetura, é matemática da música – é tudo o que quiserem – mas não é música! E um requinte de inteligências
Que essa pretensa música encontre adeptos no seio de civilizações e culturas decadentes, onde se exaurem as fontes originais do folclore (como é o caso de alguns países da Europa); que essa tendência deformadora deite as suas raízes envenenadas no solo cansado de sociedades em decomposição, vá lá! Mas que não encontre acolhida aqui na América nativa e especialmente em nosso Brasil, onde um povo novo e rico de poder criador tem todo um grandioso porvir nacional a construir com suas próprias mãos! Importar e tentar adaptar no Brasil essa caricatura de música, esse método de contorcionismo cerebral antiartístico, que nada tem de comum com as características especificas de nosso temperamento nacional e que se destina apenas a nutrir o gosto pervertido de pequenas elites de requintados e paranóicos, reputo um crime de lesa-Pátria! Isso constitui além do mais, uma afronta à capacidade criadora, ao patriotismo e à inteligência dos músicos brasileiros.
O nosso país possui um folclore musical dos mais ricos do mundo, quase que totalmente ignorado por muitos compositores brasileiros que, inexplicavelmente, preferem carbonizar o cérebro para produzir música segundo os princípios aparentemente inovadores de uma estética esdrúxula e falsa.
Como macacos, como imitadores vulgares, como criaturas sem princípios, preferem importar e copiar nocivas novidades estrangeiras, simulando, assim, que são ‘originais’, ‘modernos e ‘avançados’ e esquecem, deliberada e criminosamente que temos todo um amazonas de música folclórica – expressão viva do nosso caráter nacional – à espera de que venham também estudá-lo e divulgá-lo para engrandecimento da cultura brasileira. Eles não sabem ou fingem não saber que somente representaremos um autêntico valor, no conjunto dos valores internacionais na medida em que soubermos preservar e aperfeiçoar os traços fundamentais de nossa fisionomia nacional em todos os sentidos.
Os nossos compositores dodecafonistas adotam e defendem essa tendência formalista e degenerada da música porque não se deram ao cuidado elementar de estudar os tesouros da herança clássica, o desenvolvimento autônomo da música brasileira e suas raízes populares e folclóricas. Eles, certamente, não leram estas sábias palavras de Glinka: “a música, cria-a o povo, e nós, os artistas, somente a arranjamos...” (que vale para nós também) – e muito menos meditaram nesta opinião do grande mestre Honegger sobre o dodecafonismo: “...as suas regras são por demais ingenuamente escolásticas. Permitem ao NÃO MÚSICO escrever a mesma música que escreveria um indivíduo altamente dotado...”
Mas o que pretende, afinal essa corrente antiartística que procura conquistar principalmente os nossos jovens músicos, deformando a sua obra nascente?
Pretende, aqui no Brasil, o mesmo que tem pretendido em quase todos os países do mundo: atribuir valor preponderante à forma; despojar a música de seus elementos essenciais de comunicabilidade; arrancar-lhe o conteúdo emocional, desfigurar-lhe o caráter nacional; isolar o músico (transformando-o num monstro de individualismo) e atingir o seu objetivo principal’ que é justificar uma música sem Pátria e inteiramente incompreensível para o povo.
Como todas as tendências de arte degenerada e decadente, o dodecafonismo, com suas facilidades, truques e receitas de fabricar música atemática, procura menosprezar o trabalho criador do artista, instituindo a improvisação, o charlatanismo, a meia-ciência como substitutos da pesquisa, do talento, da cultura, do aproveitamento racional das experiências do passado, que são as bases para a realização da obra de arte verdadeira.
Desejando, absurdamente, pairar acima e além da influência de fatores de ordem social e histórica, tais como o meio, a tradição, os costumes e a herança clássica; pretendendo ignorar ou desprezar a índole do povo brasileiro e as condições particulares do seu desenvolvimento, o dodecafonismo procura, sorrateiramente realizar a destruição das características especificamente nacionais da nossa música, disseminando entre os jovens a ‘teoria’ da música de laboratório criada apenas com o concurso de algumas regras especiosas, sem ligação com as fontes populares.
O nosso povo, entretanto, com aguda intuição e sabedoria, tem sabido desprezar essa falsificação e o arremedo de música que conseguem produzir. Para tentar explicar a sua nenhuma aceitação por parte do público, alegam alguns dos seus mais fervorosos adeptos que ‘o nosso país é muito atrasado’, que estão ‘escrevendo música para o futuro’ ou que ‘o dodecafonismo não é ainda compreendido pelo povo porque a sua obra não é suficientemente divulgada...’
É necessário que se diga, de uma vez por todas, que tudo isso não passa de desculpa dos que pretendem ocultar aos nossos olhos os motivos mais profundos daquele divorcio.
Afirmo, sem medo de errar, que o dodecafonismo jamais será compreendido pelo grande público porque ele é essencialmente cerebral, anti-popular, anti-nacional e não tem nenhuma afinidade com a alma do povo.
Muita coisa ainda precisaria ser dita a respeito do Dodecafonismo e do pernicioso trabalho que seus adeptos vêm desenvolvendo no Brasil, mas urge terminar esta carta que já se torna longa demais.
E ela não estaria concluída, se eu não me penitenciasse publicamente perante o povo brasileiro por ter demorado tanto em publicá-la. Esperei que se criassem condições mais favoráveis para um pronunciamento coletivo dos responsáveis pela nossa música a respeito desse importante problema que envolve intenções bem mais graves do que, superficialmente se imagina. Essas condições não se criaram e o que se nota é um silêncio constrangido e comprometedor. Pessoalmente, acho que o nosso silêncio, neste momento, é conivência com a contrafação dodecafonista. E esse o motivo porque este documento tem um caráter tão pessoal.
Espero, entretanto, que os meus colegas compositores, intérpretes, regentes e críticos manifestem, agora, sinceramente, a sua autorizada opinião a propósito do assunto. Aqui fica, pois, meu apelo patriótico.
São Paulo, 7 de Novembro de 1950. Camargo Guarnieri.
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Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil
Resposta a Camargo Guarnieri
Por Hans Joachim Koellreutter
Por Hans Joachim Koellreutter
Consciente de minhas responsabilidades perante a nova geração de compositores, em especial diante daqueles que me foram confiados, e perante o país a cujo desenvolvimento cultural venho dedicando todos os meus esforços profissionais, movido ainda pelo profundo respeito que tenho pelo espírito criador do homem e pela inabalável fé na liberdade de pensamento, venho responder, de público, à ‘Carta Aberta aos músicos e críticos do Brasil’ que o sr.Camargo Guarnieri fez publicar, com a data de 7 de novembro de 1 950. Vejamos de início o que é o tão falado Dodecafonismo, atacado pelo sr. Camargo Guarnieri com tanta veemência e com uma terminologia pouco apta a um documento artístico. Dodecafonismo não é um estilo, não é uma tendência estética, mas sim o emprego de uma técnica de composição criada para a estruturação do atonalismo, linguagem musical em formação, lógica conseqüência de uma evolução e da conversão das mutações quantitativas do cromatismo em qualitativas, através do modalismo e do tonalismo. Não tendo, por um lado, como toda outra técnica de composição — outro fim a não ser o de ajudar o artista a expressar-se e, servindo, por outro lado, à cristalização de qualquer3 tendência estética, a técnica dodecafônica garante liberdade absoluta de expressão e a realização completa da personalidade do compositor. Ela não é mais nem menos ‘formalista’, ‘cerebralista’, ‘antinacional’ ou ‘anti-popular’ que qualquer outra técnica de composição baseada em contraponto e harmonia tradicionais. E errôneo, portanto, o conceito de que o Dodecafonismo ‘atribua valor preponderante à forma’ ou ‘despoje a música de seus elementos essenciais de comunicabilidade’; que ‘lhe arranque o conteúdo emocional’; que ‘lhe desfigure o caráter nacional’ e que possa ‘levar à degenerescência do sentimento nacional’.
O que leva ‘à degenerescência do sentimento nacional’, o que se torna um ‘vício de semimortos’ e ‘um refúgio de compositores medíocres’ e não contribui em absoluto para a evolução cultural de um povo, pelo contrário, é fonte de sucessos fáceis e de improvisações, é o nacionalismo em sua forma de adaptação de expressões vernáculas. Essa tendência, tão comum entre nós, é responsável por uma música que lembra o estado pré-mental de ‘sensação’, próprio do homem primitivo e à criança, e que, com as suas fórmulas gratuitas emprestadas ao colorismo russo-francês, não consegue encobrir sua pobreza estrutural e a ausência de potência criadora. O verdadeiro nacionalismo é um característico intrínseco do artista e de sua obra. Quando, porém, essa tendência se reduz a uma atitude apenas, leva tanto ao formalismo quanto qualquer outra corrente estética. – Entende-se por formalismo a conversão da forma artística numa espécie de auto-suficiência. Ao contrário do que afirma o sr.Camargo Guarnieri, o que me parece alarmante é a situação de estagnação mental em que vive amodorrado o meio musical brasileiro, de cujas instituições de ensino, com seu programa atrasado e ineficiente, não tem saído nestes últimos anos nenhum valor representativo. Eis a expressão, essa sim, de uma ‘política de degenerescência cultural’ e não a ânsia4 estética, o trabalho sincero dos jovens dodecafonistas brasileiros que lutam corajosamente por um novo conteúdo e uma nova forma e que jamais desprezaram o folclore de sua terra, estudando-o e assimilando-o em sua essência. Esses jovens dodecafonistas brasileiros desbravam as regiões do inexplorado à procura de uma nova realidade na arte. Escrevem música que não admite outra lógica a não ser a que nasce da própria substância musical. E verdade que essa música, apesar de toda sua perfeição estrutural, demonstra algo de instável e fragmentário, característicos de uma crise que resulta do conflito entre forma e conteúdo, a fonte mais importante do desenvolvimento e do progresso nas artes. E é justamente nisso, no alto grau de veracidade e no realismo de sua arte, que consiste o valor humano e artístico do trabalho desses jovens compositores. Quanto aos conceitos finais dos últimos parágrafos da Carta Aberta do sr.Camargo Guarnieri não merecem resposta por serem incompetentes e tendenciosos. Em lugar de demagogia falaciosa de sua carta, o sr. Camargo Guarnieri deveria ter feito uma exposição objetiva, uma análise serena e limpa dos problemas relativos aos jovens musicistas do Brasil, se é que realmente isso o interessa. O nacionalismo exaltado e exasperado que condena cegamente e de maneira odiosa a contribuição que um grupo de jovens compositores procura dar à cultura musical do país, conduz apenas ao exacerbamento das paixões que originam forças disruptivas e separam os homens. A luta contra essas forças que representam o atraso e a reação, a luta sincera e honesta em prol do progresso e do humano na arte é a única atitude digna de um artista.
Documento divulgado em vários jornais do país. Folha da Tarde, Porto Alegre, 13/01/1951
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